sexta-feira, 2 de março de 2018

A música popular e a resistência democrática

GUSTAVO CONDE


Gustavo Conde é músico, linguista e professor. Lida com teorias do humor e com os processos de produção do sentido político. É autor do Blog do Conde, espaço de discussão de temas políticos, acadêmicos e literários




A música popular brasileira é a mais rica, complexa, heterogênea e polifônica do mundo. É uma sofisticação estética e temática singular, que remonta às nossas origens fundadoras e remexe com todo o substrato cultural de maneira incessante, insinuante e imprevisível.


A música brasileira é, por assim dizer, um patrimônio imemorial, intransferível, imprecificável e revolucionário. Além de mobilizar timias e paixões, ela nos oferece a leitura densa de nossa identidade e de nossa memória, entrecortada pelo procedimento intimista e, ao mesmo tempo, catártico dos inconscientes e das pulsões sociais.


 Ela é, nesse sentido, extremamente política e, por isso mesmo, essencial às movimentações sociais e conjunturais que antecipa através de sua multivocalidade. A música brasileira é uma arma, ela é subversiva no conceito. Seu tecido metafórico e poético veste a nossa história manchada de sangue.


 A música brasileira está completamente conectada não apenas à nossa dor passional, mas à nossa dor existencial, à nossa revolta, à nossa esperança, à nossa capacidade de reação política e filosófica.


 A música brasileira é um terreno de liberdade, de ousadia de desafios múltiplos. Ela semeia sentidos, antecipa cenários, oferece a própria estrutura formal para o desfile simbólico dos discursos populares interditados. Ela é generosa, plástica, democrática, acolhe dicções e gestos, práticas e tradições, significados e desejos.


 Fronteiras da comparação estética


 Não há paralelo no mundo. A canção popular americana teve outra configuração social e estética, embora se pareça muito com a nossa do ponto de vista formal. Ali, no entanto, a disciplina instrumental e os recursos materiais produziram o jazz, a música negra tocada em instrumentos "brancos", outro vetor cultural de liberdade à sua maneira.


 Na Europa, a história também é outra. Lá, a música popular se confunde com a própria música erudita e está submetida a outro regime de pressões estéticas e fronteiras culturais, ainda que responda às mesmas paixões temáticas comuns a toda e qualquer música popular. O continente europeu, por sua vez, também é fragmentado e lida com outro tipo de memória social e política.


 De sorte que a música brasileira, sem nenhum tipo de menosprezo - até porque a arte está sempre em conexão com a arte, não importando nacionalidades -, impõe-se como um manancial infinito de sentidos, melodias, ritmos e discursos. Isso é, de uma certa maneira, de conhecimento geral e universal: o mundo respeita e reconhece a música brasileira como a mais complexa já elaborada - por uma sociedade igualmente complexa e única.


 Marchinhas, carnaval, capoeira, samba, xaxado, coco, maracatu, frevo, forró, bumba-meu-boi, cateretê, reisado, ciranda, jongo, baião, carimbó, moda de viola, fandango, bossa nova, jovem guarda, tropicália, MPB, rock nacional, lambada, olodum, pagode, sertanejo, axé, rap. A lista tende ao infinito. Qual país tem essa paleta de cores musicais?


 Óbvio que há uma questão a ser debatida para além da celebração: a questão dos 'artificialismos industriais'. Mas isso é mais um sintoma da plurivocalidade que grassa por aqui. A música brasileira é tão rica que inventar um ritmo ou um rótulo novo parece brincadeira de criança - e isso nas mãos da indústria da comunicação que domina a cena nacional - leia-se, Rede Globo - torna-se uma ameaça constante ao curso natural e popular das coisas.


 As canções que retornam como armas políticas de resistência


 O que se quer debater aqui, no entanto, é outro fenômeno. É um fenômeno de sentido, de discurso, de linguagem. E, por isso mesmo, um fenômeno político e, mais que isso, um fenômeno político de extrema importância para a nossa realidade atual. A música brasileira deve ser compreendida neste momento como um instrumento poderosíssimo de resistência e ação política, dada a violência sem precedentes que o golpe de 2016 trouxe ao país.


 E o ponto é exatamente esse: o afunilamento do debate público e a histeria coletiva que culminou num dos golpes mais violentos - porque mascarados - da história prodigiosa de golpes do Brasil preparou, ao mesmo tempo, o terreno para as mais grotescas ações do aparato paraestatal ilegítimo, como remexeu no caldo de cultura simbólico que estava relativamente bem comportado no período de democracia plena.


 Em outras palavras: o golpe ouriçou os sentidos. Muitos se perguntam sobre o porquê da ditadura militar ter produzido artistas tão contundentes e inteligentes. Eis a resposta: o arbítrio, a violência e o sufocamento social desestabilizam os sentidos sociais, deslocando-os de suas zonas de conforto semântico. Sentidos em movimento - e isso é um axioma da linguística e da psicanálise - a plurivocalidade explode como um vulcão.


 Talvez seja o dispositivo de segurança simbólico de toda e qualquer sociedade: quando os sentidos se estabilizam demais e se acomodam (a democracia plena - porém não consolidada), abre-se o espaço para as timias psíquicas mais descompensadas e atrofiadas (as paneleiras, o MBL, Marco Antonio Villa). É o preço da estabilidade discursiva relativa.


 Nota mental e bibliográfica: isso é eminentemente técnico e pode ser aferido em livros de análise do discurso francesa, como os trabalhos de Michel Pêcheux, Jean-Jacques Courtine e Dominique Mainguenau - mas também em trabalhos de Michel Foucault e Jacques Lacan. Para saber mais sobre a origem do sentido e sua relação com o movimento, conferir a teoria gerativa do linguista Noam Chomsky.


 Os sentidos que se movimentam


 Retomando o raciocínio: o sentido, portanto, não gosta de paralisia - nem de mesmice. O sentido rechaça tudo o que não seja movimento. A rigor, o sentido só existe se houver movimento (movimento fonológico, morfológico, gramatical, sintático, cenográfico, histórico, subjetivo). Se uma dessas instâncias começar a falhar, as outras tendem ir a reboque.


 Evidentemente, há de se ter as célebres "condições de produção". Ou: nem todo golpe de estado promove uma tempestade semântica. Há de se ter uma sociedade com características específicas. No caso da brasileira, uma vocação devastadora para a criatividade.


 Isso pode ser facilmente comprovado com nossos dois golpes recentes, o de 1964 e o de 2016. Há dezenas de livros sobre a canção popular brasileira que delimitam com muita clareza a "elasticidade" metafórica que a ditadura proporcionou ao cancioneiro popular. O assunto é vasto e complexo e não cabe decupá-lo aqui.


 Um exemplo, no entanto, é necessário. Cito Chico Buarque. A canção "Cálice" não ensejou muitas dúvidas e, por isso, foi logo censurada. A inteligência dos militares era extremamente limitada e só uma canção escandalosamente de protesto como Cálice - a despeito de toda a sua elegância aliterativa - poderia ser notada pelos censores rasos da ditadura brasileira - uma versão fardada do MBL em termos cognitivos.


 Se se ouvir a versão de 78, finalmente liberada pela censura depois de 5 anos (foi composta em 73), a percepção devasta. O grupo MPB4 repetindo à exaustão as palavras "cálice" e "pai", entremeados por Milton Nascimento e o próprio Chico com suas vozes soltas no tecido melódico era - e é - impactante. Os silêncios, a percussão, a dor da voz de Milton, tudo isso esfregou na cara da censura o quanto ela era obtusa (como censurar uma obra-prima daquelas?).


 Chico Buarque e as sutilezas poéticas da resistência


 Mas, as sutilezas de sentido estavam em outras canções. "Apesar de Você" fritou os neurônios do general Médici et caterva. Poucos sabem, mas ter uma canção censurada naqueles termos era uma vitória monumental de Chico Buarque e da resistência democrática. Era a certeza de que eles "entenderam o recado" e que não tinham como responder, senão proibindo. Isso, caros leitores, é a conhecida "vitória moral".


 Em geral, as pessoas 'práticas' não gostam de 'vitória moral'. Acham a vitória moral algo sem função e sem materialidade. Mas esquecem que o mundo é feito de símbolos e que são estes símbolos que definem a história, mesmo que eles não representem um "lucro político" imediato. Reclamar da vitória moral é, num certo sentido, imoral.


 Chico, no entanto, não representava só esse esfregão contumaz na cara dos milicos. Chico era também a sátira corrosiva. Seu pseudônimo Julinho de Adelaide foi uma espécie de trollagem conceitual da ditadura. Censores ficaram mais confusos do que já eram e deixaram passar um lote inteiro de canções ácida e elegantemente críticas. "Acorda Amor" era só uma delas.


 As 'proto-trollagens' de Chico e o Chico 2018


 A cada vez que Chico Buarque "enganava" a ditadura, a porção democrática do país fruía em êxtase. Isso manteve muita gente mobilizada e concentrada na retomada da democracia. Se alguém acha que foi fácil retomar a democracia, que os militares estavam cansados - a habitual tese chinfrim da imprensa e da elite brasileira -, esqueça. O que nos permitiu recobrar a democracia foi, em grande medida, a música popular brasileira que, à época, funcionou como uma "internet", ou, o espaço da liberdade de expressão, ainda que repleto de sutilezas poéticas.


 Chico Buarque pode ser o fio condutor de uma leitura sobre o período de exceção, sobretudo porque ele é um artista singular que ainda está em franca atividade e, muito mais do que isso, está de posse de seu sentido mais profundo de resistência democrática. O último álbum de Chico Buarque - As Caravanas / 2018 - é o seu trabalho mais político, disparado. Ele fulmina o golpe de estado do PSDB com a sua habitual elegância, mas com uma assertividade inédita. A dicção de Chico Buarque se adensou em termos de contundência estética e sentido político, por assim dizer.


 Tome-se, apenas para constar, alguns versos de "Desaforos", canção feita especialmente para as paneleiras do Leblon e de Higienópolis: "Vejo-te a flanar pela avenida / como dama florescida num viveiro / e em salões que nunca vi / serei o primeiro a duvidar / que em horas vagas / os teus lábios delicados / roguem pragas por aí". Devastador, com luva de pelica e um sorriso no rosto.


 Chico responde àquelas pessoas que o hostilizaram nas ruas e nas redes sociais, recomendando a ele Cuba como opção de exílio - como se Cuba fosse um castigo na Terra como Miami. É muito mais contundente e impactante que suas canções de críticas à ditadura, porque, desta vez, Chico aponta o dedo para a parcela fascista, ignorante e intolerante da população brasileira. E, convenhamos: como é gostoso testemunhar isso.


 A canção popular como estratégia de resistência


 A canção popular, portanto, é um elemento extremamente estratégico de resistência política em todo e qualquer momento histórico. Ela só distensiona os punhos quando a democracia é plena - pois, aí, podemos fazer a arte com liberdade e dentro das pulsões subjetivas do animal estético que caracteriza o sujeito histórico. Ou seja: sem a obrigação de resistir ao arbítrio explícito de poderes golpistas.


 É por isso que, agora, ela volta com essa força descomunal, inclusive agregando e retomando todo o raciocínio já iniciado nos idos de 1964, o golpe pai de todos os golpes. Traduzindo: todo o cancioneiro do período da ditadura está de volta, com sua imensa força retórica e política para, mais uma vez, nos tirar dessa enrascada épica que a nossa história golpista insiste em repetir.


 Cada verso, cada estrofe, cada refrão de toda e qualquer canção de Chico Buarque, Gonzaguinha, Aldir Blanc, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jorge Ben e toda a safra de cancioneiros dos anos 70, volta neste momento histórico como flechas afiadas e perfurantes nessa estrutura totalitária de mordaça, violência e achaques simbólicos.


 Hoje, no entanto, o sistema é muito pior. Hoje, há a Rede Globo de Televisão, esse consórcio que nasceu de maneira fraudulenta no próprio golpe de 1964. A TV Globo, caros leitores, foi "parida" em 1965, numa troca de fraudes e favores do governo brasileiro, sistemas públicos de concessão e comunicação e empresas privadas americanas, com toda a sorte de laranjas e mascaramentos fiscais. A fraude da Globo não é só essa da Fifa ou da receita federal: está na sua própria origem.


 O começo da resistência massiva e o momento da virada


 Para vencer esse sistema brutalmente corrupto e violento serão necessárias muita música popular. A Globo teme a canção popular porque sabe o poder que ela tem. Por isso, ela também entrou nesse nicho e o neutraliza com seus pavorosos 'The Voices' e especiais de Roberto Carlos, o suprassumo da alienação explícita e generalizante.


 Mas, notem que, neste ano, a poderosa Vênus já tomou o primeiro susto. A escola de samba Paraíso de Tuiuti deixou um recado extremamente poderoso, tanto para a emissora, quando para o golpe em si. Esfregou na cara da Globo toda a delinquência da emissora - que foi transmitida em rede nacional pela própria emissora, numa 'trollagem' sem precedentes que lavou a alma do brasileiro, brasileiro esse que já a aprendeu a abominar a Globo.


 De modo que todo este processo só está começando. Teremos muitas canções retomadas e muitas canções pela frente. Para superar esse golpe tão complexo que nos assaltou de maneira covarde, só a arte - articulada com muita atuação política e social - para permitir uma reação digna e eficiente. É a partir deste ponto que todos devemos concentrar nossas forças e nossos sentidos de democracia. Cantemos, portanto, mais uma vez, com todo o nosso espírito.


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Fonte:  Brasil 247

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