quinta-feira, 1 de março de 2018

SOMBRA DE OLGA BENÁRIO SOBRE STF DE CÁRMEN LÚCIA


"Três anos depois de ter assegurado manchetes na Globo ao citar o verso 'cala a boca já morreu', a presidente do STF Cármen Lúcia submete os demais ministros a um silêncio forçado, impedindo que o debate sobre um habeas corpus a favor de Lula seja feito em plenário, como vários integrantes da instituição gostariam  de fazer", escreve Paulo Moreira Leite, articulista do 247. "Mesmo em 1936, quando cedeu às pressões do governo Vargas para expulsar a militante comunista Olga Benário para Alemanha, onde morreu numa câmara de gás, o Supremo não se omitiu e fez uma reunião às claras, assumindo as consequências de uma decisão errada e indefensável", escreve o articulista. Para PML, ao se recusar a colocar o assunto em pauta, o que poderia fazer a qualquer momento, "Cármen Lúcia deixa no ar uma suspeita lamentável para uma juíza em sua função tão importante,  de que teme um resultado final com o qual não estaria de acordo"



Num país onde os erros do Judiciário não costumam ser debatidos nem avaliados com a franqueza necessária, a sentença que em 1936 negou o habeas corpus a Olga Benário, militante comunista e primeira mulher do líder do PCB Luiz Carlos Prestes, permitindo que fosse expulsa para a Alemanha nazista,  onde foi morta numa câmara de gás, costuma ser apontada como um exemplo antológico de parcialidade e submissão da mais alta corte do país a interesses espúrios ao Estado Democrático de Direito.


Oitenta e dois anos depois, o processo contra Luiz Inácio Lula da Silva, condenado  sem prova a doze anos e um mês, ameaça se transformar num caso equivalente no Brasil do século XXI, país que até há pouco tinha o direito de se imaginar livre de grande parte das barbaridades típicas de governos autoritários presentes no processo contra Olga Benário.   


Caso seja mantido à margem da decisão final sobre Lula, como indica o atitude da presidente Cármen Lúcia até aqui, o Supremo Tribunal Federal será marcado por uma postura omissa como poucas vezes se viu ao longo de nossos 195 anos como nação independente. Pela função que desempenha no Tribunal, a presidente é quem tem autoridade para convocar o debate em plenário, dando sequência a uma decisão que nem é sua. Pode fazer isso a qualquer momento. 


A decisão partiu do ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato no STF, que resolveu que o debate sobre o um pedido de habeas corpus para Lula deveria ser debatido em plenário. Nem mesmo pela Segunda Turma de 5 membros, que em geral resolve as questões da Lava Jato, disse Fachin. Mas o colegiado de 11 membros, o time completo. 


Mesmo no caso de Olga Benário a mais alta corte de justiça do país --  então chamada de Suprema Corte dos Estados Unidos do Brasil -- teve o direito de examinar um pedido de habeas corpus e se manifestar a respeito. Isso permite que suas decisões e os votos de cada juiz possam ser estudados e debatidos pelas gerações futuras, preservando lições úteis para a atitude que uma sociedade deve tomar quando o própria Justiça se torna um instrumento de medidas de exceção que deveria combater. Também obriga cada um assumir sua responsabilidade de portar togas negras numa hora grave da história brasileira. 


A decisão da Corte Suprema de 1936 foi errada e indefensável, fato que o decano do STF, ministro Celso de Mello, que presidiu a instituição entre 1997 e 1999, reconheceu com humildade: “Lamentavelmente, o Supremo, na época, não deu a melhor interpretação ao caso e sim um tratamento injusto e trágico”, disse Celso de Mello em entrevista a Luciana Nanci, do Conjur (1/9/2004).


O erro primário foi não respeitar o artigo 134 da Constituição em vigor na época, que garantia o tratamento de brasileiros a filhos de pais brasileiros, como ocorria com a criança que Olga Benário trazia em seu ventre -- a futura historiadora Anita Leocádia.Ao expulsar Olga do país, decisão provocada por um alinhamento com a diplomacia do governo Vargas no período -- cujo mérito ou demérito não se discute aqui -- a Corte permitiu que uma cidadã em pleno gozo de seus direitos fosse entregue a um regime que reconhecidamente deixara de respeitar garantias fundamentais previstas em nossa Constituição.  


Num debate que tem paralelos óbvios com a discussão de hoje, quando a Lava Jato  procura questionar garantias constitucionais -- como o trânsito em julgado que impede a prisão após uma segunda condenação -- a partir de medidas sem igual legitimidade.


Mesmo previsto na Constituição de 1934, o direito ao habeas corpus foi negado, com o argumento de que havia sido suspenso por um decreto presidencial, assinado por Vargas depois da chamada Intentona Comunista, liderada pelo PCB. O voto da minoria reconheceu  o direito ao habeas corpus em tese mas questionou o mérito, aceitando, na prática, o pedido para que Olga fosse expulsa do país, ainda que estivesse disposta a cumprir integralmente a pena de prisão a que pudesse vir a ser condenada, caso viesse a ser julgada por um tribunal brasileiro.


Como era previsível, Olga jamais teve direito a um julgamento na Alemanha. Cumpriu um regime de seis anos "prisão preventiva", como se refere numa das cartas que pode enviar a Prestes, período no qual transitou por diversos campos de prisioneiros até ser executada, em 1942.


 Apesar da oportuna auto-crítica de Celso Mello, o reconhecimento da falha criminosa em relação a Olga Benário não é uma unanimidade.


  Num esforço que apenas serve para embelezar aquilo que deve ser criticado, costuma-se alegar que ninguém poderia antecipar, em 1936, as atrocidades mais graves promovidas pelo  regime nazista  a partir da década de 1940, quando começam as execuções em massa em campos de concentração. A sugestão é que, se pudesse adivinhar o que iria acontecer, o tribunal não teria tomado a trágica decisão de expulsar Olga do país.


  Acredite quem quiser. O empenho para enviar Olga para a Alemanha era tamanho que as autoridades brasileiras chegaram a determinar seu embarque à força, num navio cargueiro, contra a vontade do próprio comandante, que não queria transportar uma passageira em avançado estado de gravidez.


 O fato é que em 1936 nenhuma autoridade brasileira ignorava a realidade  cotidiana da Alemanha nazista. Não havia dúvidas de que Hitler havia colocado de pé uma ditadura com traços peculiares de violência e crueldade. As câmaras de gás não tinham começado a funcionar mas havia campos de prisioneiros nos quais homens e mulheres eram submetidos a maus tratos,  torturas, além de vários sofrimentos, injustiças e privações. Um dos primeiros, Dachau, onde os prisioneiros eram escravizados, que começou a funcionar em 1933, logo após a vitória de Hitler, chegou a reunir 200 000 pessoas. 


   O campo de Sachsenhausen, com a mesma dimensão, foi inagurado em julho de 1936 -- dois meses antes de Olga desembarcar na Alemanha, já expulsa do Brasil, onde foi recolhida pela Gestapo e  internada num  presídio feminino.


   Logo após o nascimento de Anita Leocádia, numa postura típica de regimes totalitários que se apossam de órfãos produzidos por sua máquina de horrores, a polícia secreta nazista tentou  entregar a criança para adoção, sendo forçada a desistir em função de uma campanha humanitária organizada em vários países pelos partidos comunistas e movimentos de esquerda.


   Em 2018, o mundo é muito diferente do período histórico que gerou o holocausto. A decisão de 1936 implicou a perda de uma vida humana e não é disso que se trata aqui.


   Mas  uma questão essencial permanece.


   É difícil negar uma semelhança entre o Brasil de hoje e aquele de 1936, pelo menos num ponto. Nos dois casos, temos um Supremo Tribunal Federal com magistrados encarregados pela Republica de zelar pela aplicação das leis em vigor no país, a começar pela Constituição. Hoje, como há 82 anos, a história oferece uma oportunidade para estancar de imediato um processo errado, torto, injusto. Os magistrados de 1936 tivera sua oportunidade, desperdiçada de modo vergonhoso.  


  No STF de 2018, que tem o dever de garantir o cumprimento da Constituição aprovada em 1988 por parlamentares eleitos por 59 milhões de brasileiros, o debate ainda se encontra em fase anterior. A partir da decisão do ministro Edson Fachin, cabe-lhe assumir seu lugar como representante de um dos Poderes da Republica e debater o habeas corpus, como instância superior à altura do Legislativo e do Judiciário. Com o poder único de pautar o STF, a presidente Cármen Lúcia sequer se dispõe a convocar o plenário de onze ministros para tomar uma decisão a respeito, que poderia ter a legitimidade que só uma decisão colegiada possui. 


  Com direito a manchetes de telejornal por ter encerrado um voto sobre liberdade de expressão, em 2015, com um verso de canção infantil ("cala a boca já morreu") a presidente do Supremo agora parece empenhada em manter os demais ministros sob um regime de silêncio forçado, submetidos  a uma mordaça que nem todos estão dispostos a utilizar, como já deixaram claro. Eles têm ciência de seu papel numa hora como a atual. 


 A postura da presidente do STF sinaliza uma mensagem preocupante, assustadora, quando se considera a conjuntura de incertezas e tumultos que vive o país.


  Sugere que, para Cármen Lúcia a melhor atitude que a mais alta corte de justiça pode tomar  num caso com tamanha gravidade é fechar as portas, cruzar os braços e fazer silêncio, numa tentativa de silêncio completo e definitivo. Trata-se uma postura que não encontra amparo justificável. Pior. Num momento no qual ninguém tem o direito de ser ingênuo, é preciso admitir que estamos falando de um cálculo. A postura da omissão na verdade deixa no ar a suspeita lamentável de que a presidente teme um resultado final com o qual não estaria de acordo.


  Esta é a sombra de Olga Benário sobre o STF. Deu para entender? 




Paulo Moreira Leite é colunista do 247, ocupou postos executivos na VEJA e na

 Época, foi correspondente na França e nos EUA


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