O dia em que um senhor de 80 anos reacendeu uma chama na esquerda
Por Lia Bianchini, repórter especial do Cafezinho
As nuvens cinza que se aglomeravam no céu carioca previam a vinda de
uma chuva das fortes, na tarde desta quinta (27). Apesar disso, desde as
14h, a Concha Acústica da Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(UERJ), um local sem cobertura, começava a se encher de pessoas. Até o
fim da tarde, o espaço, que comporta seis mil pessoas, já estava lotado.
Os desavisados poderiam apostar que todo aquele público estava ali
para ver uma celebridade internacional da música ou do cinema, mas não
imaginariam que o motivo era político: quem apareceria era o
ex-presidente do Uruguai, José Mujica.
E o que nem mesmo as pessoas que estavam ali imaginavam era que, em
pouco mais de uma hora, aquele senhor de 80 anos reacenderia uma chama
na esquerda carioca.
Com jeito simples e olhar pacato, Mujica inflamava o público com suas
falas, destoantes do clássico discurso político pré-moldado e decorado.
Mujica falava de suas experiências de vida mais do que de práticas
políticas. E falava de política, aplicada à vida.
O ex-guerrilheiro tupamaro aplicava em seu discurso a verdadeira
práxis revolucionária teorizada por Marx. “Nunca vamos ter um mundo
melhor se não lutarmos para mudar a nós mesmos”, “temos que viver como
pensamos, porque, se não, acabamos pensando que vivemos” dizia Mujica.
O público, formado majoritariamente por militantes de movimentos de
esquerda, ouvia atentamente cada fala, preenchendo suas pausas com
aplausos ou palavras de ordem. Ouviu-se seis mil vozes gritarem “não à
redução”, “não vai ter golpe” e “se cuida imperialista, a América Latina
vai ter toda socialista”.
Assim, em uma única noite, o ex-presidente de um país centenas de
vezes menor que o Brasil conseguiu unir diversos movimentos e mostrar a
força da esquerda quando unida e ciente de suas pautas. Todos ali
presentes gritavam por pautas específicas e convergentes. Todos gritavam
contra a redução da maioridade penal, a favor da democracia, pelo fim
da guerra às drogas e, acima de tudo, por uma sociedade mais humana e
menos materialista, por uma alternativa à selvageria que o capitalismo
impõe.
A água da chuva, por fim, não veio. O que surgiu ali foi fogo. Pepe
Mujica se despediu com um pedido: “eu não quero aplausos. Quero apenas
manter a chama da luta acesa em todos vocês. Lutem, porque a vida é
luta”.
Abaixo, algumas das falas de Mujica:
"O alimento para o desejo permanente de transformação da alma vem de dentro da gente".
"Queridos, a nossa crise é de valores e se queremos mudança
precisamos mudar a cultura. Não há mudança sem que mudemos a cultura da
ética e da economia".
"Não vale a pena viver para pagar contas. Vivam para que possam beijar e caminhar com os seus filhos".
“Não há homem imprescindível, há causa imprescindível. Sem a força coletiva não somos nada”.
“Esta democracia não é perfeita, porque nós não somos perfeitos. Mas temos que defendê-la para melhorá-la, não para sepultá-la”.
“Meus queridos, ninguém é melhor do que ninguém. Tenho que agradecer a
sua juventude pelas recordações de tantos e tantos estudantes que foram
caindo pelos caminhos de nossa América Latina. Vocês têm que seguir
levantando a bandeira. Na vida, temos que defender a liberdade. E ela
não se vende, se conquista. Fazendo algo pelos outros. Isto se chama
solidariedade. E sem solidariedade não há civilização.”
"Não devemos deixar de nos ver brasileiros, mas temos de nos entender como latino-americanos".
“Temos que pensar como espécie não só como país. Os pobres da África não são da África, são também nossos.”
“Não temos que imitar a Europa ou ao Japão. Não podemos querer o
desenvolvimento com dor e angústia, desenvolvimento com felicidade para
todos. A generosidade é o melhor negócio para a humanidade e o pior dos
negócios são os bancos.”
“Essa etapa da sociedade capitalista tem que ter uma cultura que
permita o seu desenvolvimento. Não podemos confundir o consumo com
felicidade.”
“Eu creio que estão em crise os valores da nossa civilização. Essa
etapa do capitalismo não gera puritanos, mas gera corrupção. Não estamos
numa idade de aventura, mas uma idade de sepultura.”
“Os únicos derrotados no mundo são os que deixam de lutar, de sonhar e
de querer! Levantem suas bandeiras, mesmo quando não puderem
levantar!”.
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