segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Fim de farra. “Nóis Sofre Mais Nóis Goza” faz seu último carnaval.



Foto: internet 

Como se fosse um clarim na quarta-feira de cinzas, o texto fino de Luce Pereira anuncia: ano que vem não tem mais “Nóis Sofre Mais Nóis Goza”. O último desfile da troça mais emblemática de uma era de farra e resistência democrática acontece de sábado a oito (06/02). A partir daí, só lembrança e saudade de um tempo que, assim como a “agremiação”, não vai mais voltar.


O “Nóis Sofre…” é a cara de um período turbulento. Nasceu sob a ditadura militar e em cima dela cresceu, na sátira e no deboche. Nos sábados de carnaval, reunia os boêmios e foliões, muitos deles que já passavam a semana “conspirando” na Livro 7 de Tarciso Pereira, do Bar 7 e na Disco 7, o tripé da resistência política e cultural da Rua Sete de Setembro. Para o lado etílico da revolução, o bar Calabouço era logo ao lado.


Nunca fui muito do Galo da Madrugada, seu aperto e sua megalomania. Então, eu fazia sempre um percurso diferente da maioria e ia direto para o “Nóis Sofre…”. É que a Sete de Setembro sempre ficou esperando – palanque montado, orquestra esquentando e as águas já rolando – os resistentes que saíam do Galo e iam pra lá. Embora tenha definhado nos últimos anos, a proposta ainda é esta; mas com menos charme por serem outros tempos e pela deterioração do centro da cidade.


Por lá, ou se terminava o sábado por lá (por opção ou por bode etílico mesmo) ou se engolia dois “engoves” e se mandava para Olinda, onde o carnaval começava com gosto de gás. E aí, era com Deus.

Como em seus concursos de fantasia, onde se premiava, entre outras “categorias”, a “menos luxuosa, porém criativa”, o “Nóis Sofre Mais Nóis Goza” não era maior nem menor, era diferente. E vai deixar muita saudade. Sorte de quem o conheceu, nos seus tempos de luta e e de festa.


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NÓIS SOFRE VAI SE DESPEDIR DA FOLIA

 

Luce Pereira


Publicado no Diario de Pernambuco, em 28/01/2016 (cedido pela autora)

No carnaval de Pernambuco, incertezas são próprias da história de agremiações, troças, clubes e blocos que viram lendas. Começam como quem não quer nada, pelos motivos mais banais e algum tempo depois já reúnem multidões espetaculares. A grandeza nasce com o improviso, faz parte dele e permite várias versões que vão sendo contadas com sabor de verdade. Li pelo menos três delas para o começo da troça mais politizada, anarquista e etílica da folia pernambucana – a Nóis sofre mais nóis goza –, porém, seja qual for, não tem mais importância do que o anúncio do último desfile, surgido ontem, na redação do jornal.Quer dizer que em 2017 os sobreviventes do Galo da Madrugada não terão mais aquele encontro anual na Sete de Setembro, que rendeu amores e memórias inesquecíveis para uma geração inteira? Pois saibam que os jovens dos anos 1970 vão se sentir meio órfãos. Conheço amantes de primeira hora que mesmo morando em outra banda do país já estavam de passagem comprada para o Recife no mês de outubro, uma antecedência de pelo menos quatro meses. Sempre entenderam que não bater o ponto no desfile seria algo como renegar um lado delicioso da própria história.


Nóis sofre mais nóis goza surgiu numa época de agitação política, de desabafos à boca miúda contra o regime militar; era feita de uma irreverência que “peitava” o medo dos coturnos. Movida a deboche, caía facilmente no gosto de quem pensava e se embriagava na mesma intensidade. O primeiro estandarte, feito às pressas, de improviso, sugeria que ali não havia compromisso com compromissos, muito menos estéticos. A troça era apenas um canal para rir do que não se podia, porque, naquela época, juventude significava correr outra espécie de perigo, um perigo necessário. Sabe aquele personagem de música que encara carnaval como uma espécie de ilha da fantasia, onde amores, felicidade e sonhos se somam para criar uma forma perfeita de vida? Via-se ali, aos montes, brincando como se aquelas poucas horas fossem durar meses. Havia um lema morando nas entrelinhas da bendita anarquia : era “proibido proibir”.


Virou até curta-metragem, em 1999. Roteiro feito de verdade e ficção, saído da cabeça da videasta Sandra Ribeiro, ela própria frequentadora assídua da “esculhambação geral” há mais de uma década. Sem esquecer, também, que a troça deu título a uma música de Genival Lacerda, composta em parceria com Bráulio de Castro: “Quem não pode beber whisky/ Bebe cana com gasosa/Eu sou do bloco Nós sofre mais nóis goza”. Por isso, se ouvir de algum frequentador mais saudoso a frase “bons tempos, aqueles”, não estranhe. É assim mesmo. Cada um com um relato mais apaixonado sobre a época em que frequentar o Nóis sofre deixava o folião mais exposto do que os bons títulos da livraria Livro Sete, onde tudo começou a ganhar forma: regra geral, podia-se apostar que era de “esquerda”, gostava de cultura e de boemia, amava o amor, acreditava no homem e em um mundo melhor. Muitos mudaram radicalmente no pensamento e mais ainda na ação, é verdade, mas muitos mantêm o incorrigível “coração de estudante”.


Estes, sim, devem sentir enorme falta, embora tenham razoável estoque de boas lembranças para socorrê-los. Como sugere uma das músicas que embalaram muitos daqueles carnavais, “E no entanto é preciso cantar/ mais que nunca é preciso cantar/ é preciso cantar e alegrar a cidade” (Marcha de quarta-feira de cinzas/Vinícius de Moraes/ Carlos Lyra). A vida segue, tudo se renova e o que foi bom para sempre será.

Categories: Cultura compartilhado do blog do Gilvandro Filho

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