TEREZA CRUVINEL: CARTA ABERTA AO PRESIDENTE INTERINO MICHEL TEMER
Senhor presidente
da República em exercício,
Na noite de 19 de
fevereiro de 2008, o senhor foi um dos 336 deputados que aprovaram a Medida
Provisória 398, depois convertida na Lei 11.652/2008. Como presidente indicada
da futura Empresa Brasil de Comunicação, cuja criação a MP autorizava, estive à
frente das articulações e acordos no Congresso para sua aprovação, empenhando
minha credibilidade profissional no compromisso de instituir um sistema público
de comunicação independente e democrático, traduzindo a previsão do artigo 223
de nossa Constituição, de que houvesse complementaridade entre sistemas de
radiodifusão privado, público e estatal. Conversamos sobre o projeto na época e
o senhor, compreendendo sua natureza democrática, deu-lhe o seu voto. Em seu
partido, apenas três entre 76 deputados votaram contra. Recordo aquela
passagem nesta madrugada em que vejo no Diário Oficial um decreto seu
exonerando o atual diretor-presidente da EBC, Ricardo Melo, ao arrepio da lei
que ajudou a aprovar.
A lei aprovada com
seu voto, senhor presidente, ao assegurar um mandato de quatro anos ao diretor-presidente
da EBC, buscou preservar a independência dos canais públicos em relação
às mudanças na superestrutura do poder político. Com o mesmo objetivo instituiu
um Conselho Curador encarregado de supervisionar a programação e o conteúdo de
tais canais, composto por 15 representantes da sociedade civil, quatro do
Governo, dois do Congresso Nacional e um dos empregados. E ainda uma Ouvidoria
independente para recolher e encaminhar críticas, queixas e denúncias de
eventuais distorções apresentadas vindas da sociedade.
O decreto
publicado no Diário Oficial de hoje exonera o diretor-presidente Ricardo Melo,
nomeado em 2 de maio, invocando o artigo 19 da Lei 11.652, que se refere
expressamente ao mandato ignorado. E cita ainda o Decreto 6.689/2007, que ao instituir
os estatutos da empresa, diz no inciso I que a nomeação é prerrogativa do
presidente da República. Mas ignora, propositalmente, o parágrafo segundo do
inciso II, que diz: “ É de três anos o prazo de gestão da Diretoria
Executiva, exceto o Diretor-Presidente, que terá mandato de quatro anos,
permitida a recondução “. Esta flagrante violação legal não atenta contra
a pessoa do diretor. Atenta contra a independência que a lei buscou garantir ao
sistema brasileiro de comunicação pública, protegendo seu principal gestor de
pressões políticas que desvirtuariam sua finalidade.
Cumpri o meu
mandato entre 2007 e 2011 sem nunca ter sofrido pressões do governo do
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, nem do governo da presidente Dilma
Rousseff (no qual presidi e empresa por apenas dez meses) para direcionar
os conteúdos de tais canais. Valer-se deles para favorecer, perseguir ou
manipular seria trair os fundamentos da comunicação pública e os compromissos
firmados com a sociedade e com o Congresso na luta pela aprovação da lei em
2007. Os dirigentes que me sucederam também preservaram estas
diretrizes. Agora mesmo, na conjuntura de acirrada luta política que
resultou em sua investidura, os canais da EBC garantiram a pluralidade abrindo
espaço para atores dos dois polos da disputa, bem como para pensadores,
cientistas políticos e analistas com distintas visões do processo.
A
implantação do sistema público de comunicação, inspirado em modelos
sedimentados nas melhores democracias do mundo, não foi uma invenção
aparelhista do PT, do ex-presidente Lula ou de seu ex-ministro Franklin
Martins, que foi exemplar na observância da natureza da empresa. A EBC foi
decorrência de um forte movimento da sociedade, que reuniu jornalistas,
radialistas, artistas, acadêmicos, produtores culturais e toda a cadeia do
audiovisual brasileiro em defesa de sua criação. Ao receber a Carta de
Brasília, documento final do Fórum da TV Pública, o então presidente Lula
comprometeu-se com sua criação e, juntamente com o Congresso, proporcionou a
sua concretização. Trata-se, pois, de uma conquista de nossa jovem democracia,
agora ameaçada pelas notícias de que seu governo pretende rebaixar os canais
públicos à condição de serviços de comunicação governamental, começando pela
exoneração que atropela o mandato.
Não integro a
direção da EBC desde 2011 e só muito recentemente passei a prestar serviços à
empresa como entrevistadora do programa Palavras Cruzadas e comentarista
eventual. Mas, pelo papel que tive em sua gênese, tenho o dever histórico de
protestar contra esta violação da lei que é o marco garantidor de um sistema
realmente público. Esta lei, aprovada com seu voto, manda que a
programação, complementar à das mídias privadas ou estatais, tenha
natureza essencialmente informativa, cultural e formadora da cidadania,
observando a diversidade da sociedade. Diversidade cultural, étnica, regional e
política. Manda que atente para os esquecidos por outros meios e para os que
não têm voz. É isso que vem sendo feito nos últimos oito anos pela EBC, embora
muito ainda falte para sua plena consolidação.
Num grande esforço
de funcionários e gestores, a TV Brasil foi implantada nos primeiros 40 dias de
meu mandato e passou a compor o sistema juntamente com as rádios Nacional e a
Agência Brasil de Notícias, já existentes. Enfrentamos, eu e os que
estivemos à frente do projeto em sua fase inicial, preconceitos e
incompreensões, a diuturna oposição dos meios privados, a carência de
infraestrutura e de canais disponíveis no espectro analógico. Apesar disso, o
projeto vingou e avançou nos últimos oito anos, deparando-se agora com a mais
grave ameaça à sua sobrevivência como coisa pública.
E o governo, sendo
seu maior (mas não único) financiador, fica privado de atendimento?,
perguntou-se muito na época da votação da MP. A lei trouxe
resposta. Previu que a nova empresa iria incorporar a antiga
Radiobrás, agência de comunicação governamental. E assim reservou também à EBC
a tarefa de prestar serviços de comunicação ao Governo Federal. Entre eles a gestão
da TV NBR, esta sim, canal governamental, a produção do segmento do poder
Executivo da Voz do Brasil, a transmissão de atos oficiais e semelhantes. Para
dar conta desta tarefa, em esfera que não se confundisse com a gestão dos
canais públicos, criamos a Diretoria de Serviços. Através de um contrato com a
extinta SECOM/PR, esta unidade passou a atender todas as demandas do Palácio do
Planalto, ministérios e outros órgãos federais. Tais serviços, entretanto, não
podem ser confundidos com os canais públicos.
Senhor presidente:
a sociedade reconhece a TV Brasil e os canais EBC como coisa sua. E protestará
contra a destituição do diretor-presidente ao arrepio da lei, não para defender
um direito subjetivo dele. O que está em causa é a inobservância da lei e a
preservação de um direito difuso da sociedade brasileira, o direito a uma
comunicação pública complementar e independente, asseguradora da expressão da
diversidade e da pluralidade, característica das sociedades democráticas.
Foi isso que a
Câmara dos Deputados aprovou naquela noite, com o seu voto. Não o renegue
aniquilando a comunicação pública. A EBC é capaz, com seus recursos humanos e
sua infraestrutura, de geri-la sem deixar de atender às demandas de seu governo
através da instância específica
Publicado no Brasil 247
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